sexta-feira, 14 de agosto de 2009

armadilhas do inventário . 2005








o que sobra?
ranhuras, calafrios, 
gestos
os indícios, a felicidade
as artimanhas e a luz
os sentidos dos arredores

assim
ante ao alfabeto
no vai e vem de palavras
a memória ambulante 
altera as rotas e ritos

qual a razão do ar
da correnteza, do desejo
da palavra que preenche 
as marcas aparentes 
ácidas 

o impossível da escolha cotidiana
das contas íntimas 
da camuflagem, dos reflexos
da ferrugem, do fuso de delírios
o poema embaralha, embriaga
intervala coisa e nada


a chuva cai
a paisagem chacoalha
o quintal, a fonte, o beco
o muro da adivinhação
o dragão que mora dentro do agora


mapas, astrolábio
as coisas iguais
o tempo em mim
tanta coisa nenhuma
o acaso venta
os sonhos na madrugada
o que desaparece
mesmo durando
mesmo não sendo  o que não foi 


a manhã serve-me os dedos do vento
sirvo-me a manhã 
a pele do amar
a sorte e as redondezas
o invisível segura o instante
no diário de vidro

o lápis, a tralha, o proveito
o sal, o sereno
a palavra atropela a palavra
o dormir e o acordar
a geografia do vento
o mar

o artifício das mãos
o desejo de eternidade
as rezas, as pedras
passeio na fantasia
a sala de sol
a conversa qualquer que vem


flores, vasto, ar
 tarde
o que cabe de mim
desenho de dentro, avesso
a vastidão quando fecho os olhos
na pausa da tarde
nas águas nuvens

o outro dia
o silêncio quase vermelho
um vermelho laranja
traço rotas
recorto o ar
nos passeios de bicicleta
nos arredores 
o vento em mim
eu aqui

para que lado penso
quantos lados tenho
o que penso agora
altero os ritos, os ditos
as vírgulas, o quase
o nada e a névoa
as escalas, o outro lugar

na bolha do meu peito
o desejo de ser maior
de ser poeta
no atropelar do vento
nas minúcias e minudências

anoitece
o paladar do céu avança
a linha, os lugares suaves
a vida leve
faço nada
nem barulho

venta
a noite é azul
quanta lua


"uma das decorrências da teoria da relatividade
é que toda a influência entre dois corpos
está condicionada ao limite da velocidade da luz.
determinados pares de partículas têm um
comportamento indissolúvel e instantaneamente ligado,
não importando a distância entre elas."

sobre a geografia interior . 2004



1.
a moça de blusa amarela
anda pela rua
com sapatos de vento


2.
o sol 
brinca de roda
na pele do céu


3.
a forma que difere
outra longa história  


4.
a penumbra entrecorta
a cintilação da tarde
a intimidade úmida


5.
arisca
a saudade profunda
enleia-se em chama


6.
como simples relâmpago
o verso traça a noite


7.
o presságio desperta
ímpetos e vulvas


8.
noite
ainda que seja
é tão mais



9.
entre cães e árvore
o privilégio de exercer idiotices


10.
o verso destino
o poema destina


11.
a oliveira 
o cetro 
a umidade 

duo . 2003





1
de um lugar ao outro
a qualidade do breve


2
o qualquer lugar
a paisagem inútil
o risco na parede


3
os galhos do tempo
as mesmas estrelas
as águas que passam


4
penso em tirar do silêncio
os versos de te acordar


5
o vão da memória
o silêncio maduro
a fenda rendada


6
o desenho geométrico
uma palavra, mais outra, mais
o verso traçado de invisíveis


7
o tempo rói os móveis
os arcos nas nuvens
o prisma de cristal


8
o vidro verde
a sombra lançada
as coisas ditas na chuva


9
na paisagem de fios
a dimensão da avenida
pende nos luminosos


10
em piqueniques flutuantes
entre utensílios e turbulência
a janela decompõe pavimentos





administração das coisas . 2002






1
a noite imersa na caverna
os catadores de algas
o porteiro qualquer de hotel


2
livre dos entraves
da linha divisória das coisas
o encanto de tudo


3
as circunstâncias
a intimidade dos limites


4
cessa o útil 
um poema e outro
o idioma das coisas

5
o acaso
a transversal da cidade
o acréscimo circunstancial


8
as cores incertas dos muros
dispõe a geometria lúdica

cartografia da sensibilidade . 2001






1
o sempre árido
o adeus frágil
o parapeito da solidão


2
nave
nunca o mesmo
mar


3
o acaso envolve 
define
estende o que termina


4
azul atrás infinito
a noite cobre-se


5
lua
o tempo tão ágil
dia


6
na permanente sina
o sol arde no dragão


7
tempestade
o silêncio furor
a represa do nada


8
águas e uvas
estratégias
a coisa alguma


9
o poema longo
o contorno
o abraço do lago


10
o rio 
a árvore
o sempre


11
estrelas móveis
músicas
traços na noite


12
rente
a fruta sobre o vão
prende o dia


13
a solidão entre tudo
entre ela e si mesma


14
o avesso
as sombras
o resto, o erro


15
mar
o azul no azul maior
ar


16
a folha
o leite da lua
a noite nova


17
o silêncio mais dentro
a palavra muda


18
a manhã
abre-se
oceano


19
pedra e horizonte
a tralha dos dias
a matéria bruta


20
o inventário das noites
as coisas como são
aço, vidro, água, animal

bárbara . 1999.2000




bárbara


1

do desdobramento sai o dragão alado, o odor de ferrugem, as auréolas. um mistério qualquer atravessa o dia. da calma nasce terremotos.

2

como quem anda pela casa, bárbara passeia pela alma. às vezes niilista, às vezes vulnerável e sincera é fascinada por elefantes, espelhos e labirintos. vive num lugar que é a extensão da sua faculdade de ausência, do seu silêncio interior.

3

abre a janela à luz da árvore de folhas rubras e ao jorro da manhã. o que move as folhas? o que move seu coração? invisível na paisagem um dragão corre ao longo dos arbustos.

4

o vento passa vazios. com a nostalgia do guerreiro que nunca foi. bárbara arranca do calendário o dia que finda. num gesto abandonado, passa a mão na testa. nada se fixa ou se acomoda. é, para o resto da vida, ligada às palavras.

5

faz versos e questiona a natureza de todas as coisas: as minudências, um jogo de botão, um rio de menino. caracol é uma solidão que anda nas paredes; ela, um ser de irreverências que anda com desertos.

6

anna camufla o seu projeto de querer estar neste quintal deixando crescer até rasgar o corpo e imover-se do que quer que seja, para dentro ou para fora com igual potência. é como uma criança que tem tudo o que nunca basta.

7

bárbara naufraga num mar de objetos, na obscenidade das relações, na impotência subjetiva. a multidão, o tempo, o movimento escultural das autoestradas. 5 horas da tarde de uma 6ª feira em fevereiro. atônica, a campainha toca. convida-a para passear no quintal. caminham entre os canteiros seguindo as trilhas elásticas onde as essências amadurecem à sombra. anna assola-se com as raízes eriçadas e imperfeitas e as folhas que aderem aos passos. da sua voz fluvial vertem palavras despossuídas.

8

bárbara pensa em como teria sido a vida. vive o não saber, nos caminhos do ser, do não ser e do parecer, apenas como é. dá sentido à experiência da vida fixando em palavras o que pertence ao sentir. falta-lhe a necessidade de conclusões definitivas. a amizade é um tipo de amor e o amor é importante. tem dúvida quanto a esperança, que é necessária. como alice, atravessa o espelho.

9

a cidade dorme e o ar estala seco. na sombra, não se move ou fala. a beleza é remota.

10

uma gota de chuva pende. o sol roça a cortina e instala-se entre cadeiras.

11

a árvore engole o dia.

12

as nuvens ao vento, os rastros de lesmas, as pequenas coisas que tocam e partem.

13

apoiada ao muro, bárbara examina o que a destina. onde se encontram passado e presente? as sombras seguem-se umas às outras. suspensa sobre a vidraça, a lua engata-se na simetria das linhas.

14

como um rio grosso, como tudo que se entranha, algo pousa. a mesa, a enorme gaveta, os papéis. o que há com as coisas? não são as mesmas? que é isso que aspira ao fulgor? que é isso que é mais que demasia? a rua dá a ideia: o armazém, a torre da igreja, o jardim. os degraus largos, o banco do convento. sabe que as melhores frases são feitas na solidão.

15

o dia amanhece nos seios das grades arquitetônicas. não vê ninguém, um alguém de ecos, um reflexo ainda. a manhã, como uma teia tênue, se entretece se erguendo tenda. enrosca-se como um gato gordo nalgum canto, num recanto. quanto tempo a eternidade necessita para tornar a mão do macaco no gesto de da vinci?

16

refugia-se entre a soleira da porta e os confins do tempo. não nutre simpatia pela espécie humana, prefere a companhia dos bichos. sabe que escrever é uma atividade necessariamente cruel. troca as mentiras cosméticas pela deformação do real.

17

anna diverte-se. o sentimento irrefletido de entrega aos impulsos a move. ama ou não? tem uma inquietude, uma emergência que sempre surpreende. um misto de satisfação e temeridade.

18

bárbara questiona o que é preciso dar em troca. a arte é um toque no instante. um trabalho solitário e perigoso: há restos, coisas expurgadas. é um chamado, uma ginástica e um álibi. um ponto de interrogação que permite refletir antes de responder.

19

sente a ausência de tudo. guarda num baú coisas antigas: fotografias, livros, um sorriso que corria ao vento, um desenho de bicicleta.

20

palavras, palavras e mais palavras. como medir, nomear ou somar os fragmentos? ser lembrado é ver-se adulterado, misturado, tornado parte do outro. não conclui a carta que escreve. em sua mesa há sempre cartas interrompidas. passeia entre bicicletas e aromas evanescentes da rua distraída. o vento de outubro, a janela incandescente, a luz da lâmpada sobre seus livros. abandona-se. é um caracol. segue as palavras para onde elas levem.



"não há intelectuais simpáticos, os que parecem fingem"


outubro . 1998












1
parte
ainda que seja
é mais


2
anda pela rua
o causal banal


3
memória

tanto é tão pouco


4
o pastor
o rebanho
a ovelha perdida


5
fome, sede, subsistência
papel e vidro
óculos e idéias
qualquer sentimento


6
as estrelas, a luz
a dúvida sobre o tom
a via do delírio


7
a mão chama
dentro a noite marmórea
a domesticidade


8
invisível paisagem
o amor descritível
ou verso ou silencio


9
o vento pula de cor pelos muros

10
coisas
um outro lugar
um rumo na vida


11
a imortalidade
a forma da afeição
as coisas cumpridas


12
 ponto de vista
pessoas, pedras, vento, macaco
vago por todos os olhos


13
traga o luar
o fardo do dia


14
uma árvore
como um cão
é algo humano


15
sômbria água
a luz
a vida no ar


16
a utilidade 
breve
um poema e outro

17
dorme o cão
abstrai-se da humanidade

18
na plataforma
o que falta para gente ser árvore


19
quem fala
uma mulher ou uma pedra?


20
difícil achar um lugar
deus é o único sistema capaz

levantamento planialtimétrico . 1997





1
gestos, amora, brisa
na linha de luz ao fundo
um dragão e os absurdos


2
a lua translucida a fresta
os maquinismos inventados
o túnel que liga os extremos


3
o cão traz o galho
o tom grave e negro
a solidão fascinante
as proezas infantis


4
alegorias, enigmas, eclipses
frases feitas, talvez poema
um verbo, seu nome


5
o quase do sentir
a pausa temporal
o fruto preparado


6
o verbo
o verso a giz
o ato que leva


7
as lógicas móveis
a caixa de hipermágica
as palavras simétricas


8
as mesmas estrelas
as águas que pairam
as vulvas entrelaçadas


9
o inventar do invisível
a lua em eclipse


10
uma rua, outra mais
estátuas brancas, carrossel
cruzamentos


11
os arcos elevados
o risco de luz concreto
os paralelepípedos


12
a extensão da avenida
a pressa ruidosa
os peque-niques flutuantes


13
a generalidade
o jeito materno
as fantasmagorias


14
as palavras de acordar
as curvas aconchegadas


15
o muro que quebra para lá
o jardim bordado em vivas
a flor de nome coração


16
os muitos dias das estações
a neve do toque dos astros


17
cercanias e grades
a física elementar
a teoria das cordas


18
o corte, o mote
ao sul estrelas
à leste o todo


19
na noite de gestos
os odores do dia
os pontos marcados


20
a sombra
as palavras pelos fios
o vácuo motriz na teia invisível


21
sem local de pouso
o destino dos versos
no ritual do vento


22
a paisagem de pavimentos
espetáculo simétrico e ágil
entre solidão e turbulência


23
encantamento
todas as frestas
todos os trunfos


24
a casa de vidro
o domingo
o canteiro das ervas
as flores dos sonhos
o som azinavre

lunar . 1996





1
a domesticidade 
me sirvo de nada
ao relento
sobre os vasos
o muro roído de sol

2
geografia, cosmografia, mecânica
números, algarismo
o animal em torno
a vertigem extensa

3
o enxame das folhas
o ar imóvel, as lembranças soltas
a carruagem enfeitada de fitas

4
a velocidade da luz
a felicidade do cão
a alquimia do verso

5
a lua negra 
os mares e fábulas
as sereias, a casa

6
as ciências clássicas
a ordem dos canteiros
os brinquedos infantis

7
um líquido desenho singular
esta curva, aquela arqueada
ângulo oblíquo sobre a primeira

8
a banda irlandesa
o vinho da caverna

9
impossível exprimir a noite desse céu
o brilho na escadaria dos mistérios
o inexplicável azul entre os juncos

10
a acidez geológica da tinta 
a curva através da aresta 
a linha do oriente
a concha marinha e humana

11
pela vidraça convexa
a carruagem dá voltas na relva

12
a fonte
o ângulo 
o turbilhão da luz

13
modo e parte
maré e ciclos

14
o betume se recurva
a lua na hera

15
há estalagens e princesas
os raios azuis e o perfume
a lua nos lábios

16
a aplicação de cálculos
a posse midiática
a máquina de  fractais
um ser imaterial escapa à revelia

17
a claridade do outono
o rumor das correntes
o infinito matemático

18
declive singular no vão
a intersecção da luz
a magia do ponto

19
repousa
a luz diluviana da caixa
o gesto tecnomotriz
os números fugazes

20
o mar
o peso dos astros
o que perdura e passa

21
o céu arfante
as pedras vastas
o vento da arrebatação

22
a lua que muda com as estações
vermelha ao cio da afeição
azul ao intento

23
o limo que a lua azula
o cão vermelho
as cadeiras roídas de espaço