ranhuras, calafrios, gestos
as artimanhas e a luz
os sentidos dos arredores
da palavra que preenche
das contas íntimas
o tempo em mim
a sorte e as redondezas
o invisível segura o instante
no diário de vidro
bárbara
1
do desdobramento sai o
dragão alado, o odor de ferrugem, as auréolas. um mistério qualquer atravessa o
dia. da calma nasce terremotos.
2
como quem anda pela casa, bárbara passeia pela alma. às vezes niilista, às vezes vulnerável e sincera é fascinada por elefantes, espelhos e labirintos. vive num lugar que é a extensão da sua faculdade de ausência, do seu silêncio interior.
3
abre a janela à luz da
árvore de folhas rubras e ao jorro da manhã. o que move as folhas? o que move
seu coração? invisível na paisagem um dragão corre ao longo dos arbustos.
4
o vento passa vazios.
com a nostalgia do guerreiro que nunca foi. bárbara arranca do calendário o dia
que finda. num gesto abandonado, passa a mão na testa. nada se fixa ou se
acomoda. é, para o resto da vida, ligada às palavras.
5
faz versos e questiona a
natureza de todas as coisas: as minudências, um jogo de botão, um rio de
menino. caracol é uma solidão que anda nas paredes; ela, um ser de
irreverências que anda com desertos.
6
anna camufla o seu projeto de querer estar neste quintal deixando crescer até rasgar o corpo e imover-se do que quer que seja, para dentro ou para fora com igual potência. é como uma criança que tem tudo o que nunca basta.
7
bárbara naufraga num mar
de objetos, na obscenidade das relações, na impotência subjetiva. a multidão, o
tempo, o movimento escultural das autoestradas. 5 horas da tarde de uma 6ª
feira em fevereiro. atônica, a campainha toca. convida-a para passear no
quintal. caminham entre os canteiros seguindo as trilhas elásticas onde as
essências amadurecem à sombra. anna assola-se com as raízes eriçadas e
imperfeitas e as folhas que aderem aos passos. da sua voz fluvial vertem
palavras despossuídas.
8
bárbara pensa em como
teria sido a vida. vive o não saber, nos caminhos do ser, do não ser e do
parecer, apenas como é. dá sentido à experiência da vida fixando em palavras o
que pertence ao sentir. falta-lhe a necessidade de conclusões definitivas. a
amizade é um tipo de amor e o amor é importante. tem dúvida quanto a esperança,
que é necessária. como alice, atravessa o espelho.
9
a cidade dorme e o ar
estala seco. na sombra, não se move ou fala. a beleza é remota.
10
uma gota de chuva pende.
o sol roça a cortina e instala-se entre cadeiras.
11
a árvore engole o dia.
12
as nuvens ao vento, os
rastros de lesmas, as pequenas coisas que tocam e partem.
13
apoiada ao muro, bárbara
examina o que a destina. onde se encontram passado e presente? as sombras seguem-se
umas às outras. suspensa sobre a vidraça, a lua engata-se na simetria das linhas.
14
como um rio grosso, como tudo que se entranha, algo pousa. a mesa, a enorme gaveta, os papéis. o que há com as coisas? não são as mesmas? que é isso que aspira ao fulgor? que é isso que é mais que demasia? a rua dá a ideia: o armazém, a torre da igreja, o jardim. os degraus largos, o banco do convento. sabe que as melhores frases são feitas na solidão.
15
o dia amanhece nos seios
das grades arquitetônicas. não vê ninguém, um alguém de ecos, um reflexo ainda.
a manhã, como uma teia tênue, se entretece se erguendo tenda. enrosca-se como
um gato gordo nalgum canto, num recanto. quanto tempo a eternidade necessita
para tornar a mão do macaco no gesto de da vinci?
16
refugia-se entre a
soleira da porta e os confins do tempo. não nutre simpatia pela espécie humana,
prefere a companhia dos bichos. sabe que escrever é uma atividade
necessariamente cruel. troca as mentiras cosméticas pela deformação do real.
17
anna diverte-se. o
sentimento irrefletido de entrega aos impulsos a move. ama ou não? tem uma
inquietude, uma emergência que sempre surpreende. um misto de satisfação e
temeridade.
18
bárbara questiona o que
é preciso dar em troca. a arte é um toque no instante. um trabalho solitário e
perigoso: há restos, coisas expurgadas. é um chamado, uma ginástica e um álibi.
um ponto de interrogação que permite refletir antes de responder.
19
sente a ausência de
tudo. guarda num baú coisas antigas: fotografias, livros, um sorriso que corria
ao vento, um desenho de bicicleta.
20
palavras, palavras e
mais palavras. como medir, nomear ou somar os fragmentos? ser lembrado é ver-se
adulterado, misturado, tornado parte do outro. não conclui a carta que escreve.
em sua mesa há sempre cartas interrompidas. passeia entre bicicletas e aromas
evanescentes da rua distraída. o vento de outubro, a janela incandescente, a
luz da lâmpada sobre seus livros. abandona-se. é um caracol. segue as palavras
para onde elas levem.
"não há intelectuais simpáticos, os que parecem fingem"