sexta-feira, 14 de agosto de 2009

bárbara . 1999.2000




bárbara


1

do desdobramento sai o dragão alado, o odor de ferrugem, as auréolas. um mistério qualquer atravessa o dia. da calma nasce terremotos.

2

como quem anda pela casa, bárbara passeia pela alma. às vezes niilista, às vezes vulnerável e sincera é fascinada por elefantes, espelhos e labirintos. vive num lugar que é a extensão da sua faculdade de ausência, do seu silêncio interior.

3

abre a janela à luz da árvore de folhas rubras e ao jorro da manhã. o que move as folhas? o que move seu coração? invisível na paisagem um dragão corre ao longo dos arbustos.

4

o vento passa vazios. com a nostalgia do guerreiro que nunca foi. bárbara arranca do calendário o dia que finda. num gesto abandonado, passa a mão na testa. nada se fixa ou se acomoda. é, para o resto da vida, ligada às palavras.

5

faz versos e questiona a natureza de todas as coisas: as minudências, um jogo de botão, um rio de menino. caracol é uma solidão que anda nas paredes; ela, um ser de irreverências que anda com desertos.

6

anna camufla o seu projeto de querer estar neste quintal deixando crescer até rasgar o corpo e imover-se do que quer que seja, para dentro ou para fora com igual potência. é como uma criança que tem tudo o que nunca basta.

7

bárbara naufraga num mar de objetos, na obscenidade das relações, na impotência subjetiva. a multidão, o tempo, o movimento escultural das autoestradas. 5 horas da tarde de uma 6ª feira em fevereiro. atônica, a campainha toca. convida-a para passear no quintal. caminham entre os canteiros seguindo as trilhas elásticas onde as essências amadurecem à sombra. anna assola-se com as raízes eriçadas e imperfeitas e as folhas que aderem aos passos. da sua voz fluvial vertem palavras despossuídas.

8

bárbara pensa em como teria sido a vida. vive o não saber, nos caminhos do ser, do não ser e do parecer, apenas como é. dá sentido à experiência da vida fixando em palavras o que pertence ao sentir. falta-lhe a necessidade de conclusões definitivas. a amizade é um tipo de amor e o amor é importante. tem dúvida quanto a esperança, que é necessária. como alice, atravessa o espelho.

9

a cidade dorme e o ar estala seco. na sombra, não se move ou fala. a beleza é remota.

10

uma gota de chuva pende. o sol roça a cortina e instala-se entre cadeiras.

11

a árvore engole o dia.

12

as nuvens ao vento, os rastros de lesmas, as pequenas coisas que tocam e partem.

13

apoiada ao muro, bárbara examina o que a destina. onde se encontram passado e presente? as sombras seguem-se umas às outras. suspensa sobre a vidraça, a lua engata-se na simetria das linhas.

14

como um rio grosso, como tudo que se entranha, algo pousa. a mesa, a enorme gaveta, os papéis. o que há com as coisas? não são as mesmas? que é isso que aspira ao fulgor? que é isso que é mais que demasia? a rua dá a ideia: o armazém, a torre da igreja, o jardim. os degraus largos, o banco do convento. sabe que as melhores frases são feitas na solidão.

15

o dia amanhece nos seios das grades arquitetônicas. não vê ninguém, um alguém de ecos, um reflexo ainda. a manhã, como uma teia tênue, se entretece se erguendo tenda. enrosca-se como um gato gordo nalgum canto, num recanto. quanto tempo a eternidade necessita para tornar a mão do macaco no gesto de da vinci?

16

refugia-se entre a soleira da porta e os confins do tempo. não nutre simpatia pela espécie humana, prefere a companhia dos bichos. sabe que escrever é uma atividade necessariamente cruel. troca as mentiras cosméticas pela deformação do real.

17

anna diverte-se. o sentimento irrefletido de entrega aos impulsos a move. ama ou não? tem uma inquietude, uma emergência que sempre surpreende. um misto de satisfação e temeridade.

18

bárbara questiona o que é preciso dar em troca. a arte é um toque no instante. um trabalho solitário e perigoso: há restos, coisas expurgadas. é um chamado, uma ginástica e um álibi. um ponto de interrogação que permite refletir antes de responder.

19

sente a ausência de tudo. guarda num baú coisas antigas: fotografias, livros, um sorriso que corria ao vento, um desenho de bicicleta.

20

palavras, palavras e mais palavras. como medir, nomear ou somar os fragmentos? ser lembrado é ver-se adulterado, misturado, tornado parte do outro. não conclui a carta que escreve. em sua mesa há sempre cartas interrompidas. passeia entre bicicletas e aromas evanescentes da rua distraída. o vento de outubro, a janela incandescente, a luz da lâmpada sobre seus livros. abandona-se. é um caracol. segue as palavras para onde elas levem.



"não há intelectuais simpáticos, os que parecem fingem"


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